A Tesmoforia - Sennett
Trecho retirado do livro "Carne e Pedra" de Sennett.
"A Tesmoforia, na sua origem pré-homérica, nada mais é que um rito de fertilidade presidido por Deméter - deusa da terra - e conduzido pelas mulheres, no fim do outono, às vésperas do plantio das sementes. A história desse festival começa o enterro de Perséfone, filha da deusa enlutada; o nome decorre do gesto cerimonial de colocar objetos no solo (thesmoi, em grego, significa "baixar", no sentido amplo de falar com certeza e convicção). Ao fim da primavera, as mulheres abatiam porcos, que a mitologia grega considerava sagrados, enterrando-os, para que apodrecessem em buracos chamados megara. Esse momento de preparação era chamado de Scirophoria, simbolizando a fertilização da terra. O santuário de Deméter, em Elêus, situava-se fora de Atenas. A Tesmoforia, realizada ao longo de três dias do outono, dentro dos muros da cidade, transformava o ato de adubar o chão numa experiência urbana.
No primeiro dia, as mulheres retiravam os restos úmidos dos porcos das cavidades em que estavam sepultados, cobrindo suas carcaças com sementes. Deixando-as nas covas, elas se dirigiam a abrigos de madeira, em cujo pavimento sentavam e dormiam, simbolizando a morte - kathodos - e o renascimento - anodos. No dia seguinte, jejuavam, para celebrar a morte de Perséfone; expunham seu pesar lamentando-se e praguejando. A terceira jornada destinava-se à recuperação da massa fétida depositada a terra, misturada aos grãos, para que fosse plantada como uma substância sagrada.
Aparentemente, a Tesmoforia representava a história de Deméter tal como a conheciam os cidadãos da Atenas de Péricles - uma história de morte e renascimento, da deusa que entregou sua própria filha ao solo, uma rendição semelhante àquela que o enterro dos guerreiros mortos em combate expressava. Ainda assim, o ritual alterava o mito agrícola original ao contrapor fertilidade não à esterilidade, mas à abstinência sexual. Desde os três dias anteriores e durante todo o festival, as mulheres sequer dormiam com os maridos. O luto mitológico por uma filha cujo corpo morto nutre a terra transformava-se no drama construído em torno do tema do autocontrole.
Em uma passagem recorrente, o classicista Jean-Pierre Vernant evocou o rito ateniense:
O tempo do plantio marca o início do período propício ao matrimônio; mulheres casadas e mães de família, acompanhadas de suas filhas legírimas, celebrando como cidadãs uma cerimônia oficial durante a qual permanecem separadas de seus maridos; silêncio, jejum e abstinência sexual; elas assumem uma posição imóvel, agachadas; descem ao subterrâneo megara, para recolher talismãs de fertilidade que serão misturados às sementes; predomina uma leve e nauseabundo aroma e, ao invés de plantas aromáticas, há ramos de salgueiro, planta com propriedades antiafrodisíacas.
Tudo tinha alguma importância no rito, desde o perfume inibidor dos desejos, o odor poluente das matérias em putrefação, até a escuridão dos abrigos em que as mulheres se esfregavam no chão. Seus corpos se tornavam quase inertes e frios, quase sem vida. Dessa condição passiva e gelada o ritual as transformava em corpos dignificados, representando o luto de Deméter.
Enquanto o mito da deusa relaciona as mulheres à terra, a Tesmoforia, em Atenas, ligava-as umas às outras. Esse novo compromisso aparecia na organização formal do festival, que elas próprias celebravam. "Homens só se envolviam à medida que, se fossem ricos, tinham de suportar as despesas, como uma parte do rito, ou uma taxa, no interesse de suas esposas", escreve Sarah Pomeroy. A mulher oficiava a liturgia como cidadã, diz Vernant, muito embora precisasse afastar-se do mundo dos homens para fazê-lo. Como um fardo nascido da carne morta e dos grãos, somente no último dia elas retornavam a seus cônjugues, que as esperavam do lado de fora das cabanas. O manto da escuridão na terra, o frio das covas, a proximidade com a morte transformara o status de seus corpos. Durante a Tesmoforia, as mulheres fazem uma jornada através das trevas, emergindo à luz com sua dignidade afirmada.
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